sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Interpretar textos para aprender

LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO
Avolumam-se, com suspeito sincronismo, as denúncias na imprensa sobre a prática do nepotismo entre os políticos brasileiros. Como um dos atingidos pela nefasta campanha, que visa a denegrir a imagem do servidor público no Brasil, a mando de interesses inconfessáveis, me senti no dever de responder publicamente às insidiosas insinuações, na certeza de que assim fazendo estarei defendendo não apenas minha honra — apanágio maior de uma vida toda ela dedicada à causa pública e à tradição familiar que assimilei ainda no colo do meu saudoso pai quando ele era prefeito nomeado da nossa querida Queijadinha do Norte e eu era o seu secretário particular, depois da escola — mas também a honra de toda uma classe tão injustamente vilipendiada, a não ser quando pertence a outro partido, porque aí é merecido. A imprensa brasileira, em vez de cumprir seu legítimo papel numa sociedade democrática, que é o de dar a previsão do tempo e o resultado da Loteria, insiste em perscrutar as ações dos políticos, como se estes fossem criminosos comuns, não qualificados, e em difamá-los com mentiras. Ou, em casos de extrema irresponsabilidade e crueldade, com verdades. Outro dia, depois de ler uma reportagem em que um órgão da nossa grande imprensa me fazia acusações especialmente levianas, virei-me para meu chefe de gabinete e comentei: "Querida, por que eles fazem isto comigo?" Mas ela apenas resmungou alguma coisa, virou-se para o outro lado e continuou a dormir, obviamente perplexa.

As hienas da imprensa não medem as consequências das suas infâmias. Tive que proibir aos meus filhos a leitura de jornais, para poupá-los. Como a função dos quatro no meu gabinete é unicamente a de ler jornais e eventualmente recortar algum cupom de desconto, o resultado é que passam o dia inteiro sem ter o que fazer e incomodando a avó, que serve o cafezinho. Não me surpreenderei se algum jornal publicar este fato como exemplo de ociosidade nos gabinetes governamentais à custa do contribuinte. O cinismo dessa gente é ilimitado.

Mas enganam-se as hienas se pensam que me intimidaram.

Não viro a cara para meus acusadores, embora eles só mereça desprezo, mas os enfrento com um olhar límpido como minha consciência e um leve sorriso no canto da boca. Minha vida como parlamentar é um livro-ponto aberto, imaculadamente branco. Como ministro, não tenho o que esconder. E, mesmo que tivesse, não haveria mais lugar nos bolsos. As acusações de nepotismo são tão fáceis de responder que até meu secretário de imprensa, o Gedeão, casado com a mana Das Mercês, e que é um bobalhão,
poderia se encarregar disto. (............................................)

Mas não vou dar aos meus difamadores a satisfação de reconhecer a pseudo-irregularidade. No meu caso, ela simplesmente não existe. "Nepotismo" vem do italiano "nepote", sobrinho, e se refere às vantagens usufruídas pelos sobrinhos do papa na Corte Papal, em Roma. Bastava ser sobrinho do papa para ter abertas todas as portas do poder, sem falar de bares e bordéis. "Sobrinho" não era um grau de parentesco, era uma profissão e uma bênção. A corte eclesiástica era dominada pelos "nepotes", e, neste caso, a corrupção era evidente. Qual o paralelo possível com o que acontece no Brasil hoje em dia? Só na fantasia de editores ressentidos, articulistas mal-intencionados e repórteres maldizentes as duas situações são comparáveis. Desafio qualquer órgão de imprensa a vasculhar meus escritórios, meus papéis, minha casa, meu staff, minha vida e encontrar um — Um único! — sobrinho do papa entre meus colaboradores.

Não há sequer um sobrenome polonês!

Exijo retratação.

Luís Fernando Veríssimo é pseudónimo Veja, 12 de abril, 1989 - pág. 19

1) A leitura global do texto permite reconhecer que, no seu interior, existe uma voz que se pronuncia contra o que considera "uma nefasta campanha da imprensa". De que campanha se trata?

2) Segundo essa mesma voz, com que intensão desancadeou-se essa "nefasta campanha"?

3) Quem fala, no texto, é um funcionário público e até uma certa altura tem-se a impressão de que se trata de um texto em defesa dos funcionários públicos atingidos por violenta campanha difamatória.
Cite, no referido intervalo, passagens que assumem a defesa do funcionalismo público.

4) Ocorre que, num texto, o significado das partes é definido por sua relação com o todo. Dessa forma, do meio do primeiro parágrafo em diante, começa a haver inserções no texto que permitem reconhecer o cará-ter irónico do texto. Essa ironia permite reconhecer duas vozes que se contradizem no interior do texto: uma, que procura preservar a reputação do funcionalismo público; outra, que o ridiculariza. Aponte, no texto, passagens inseridas com a intenção de desqualificar os argumentos de defesa do funcionário público.

5)  No final do texto, ocorre uma nota alertando para o fato de que Luís Fernando Veríssimo é pseudônimo. Essa nota tem alguma relação com a dualidade de vozes que se opõem no interior do texto, ou seja, revela o distanciamento de uma voz e a identificação com outra?

6)  Disseminadas pelo texto, existem várias passagens que servem para confirmar a prática do nepotismo por parte do funcionário público. Quais são essas passagens?

7) Para defender-se da acusação de nepotismo, o funcionário público inscrito no texto usa o seguinte esquema argumentativo: "Nepote" significa sobrinho e se refere às vantagens usufruídas pelos sobrinhos do papa na corte papal; Ora, entre os seus colaboradores não há nenhum sobrinho do papa: Portanto, ele não pode ser acusado de nepotismo. Onde está o caráter grosseiro dessa argumentação?

8) Levando em conta o contexto geral do texto lido e o significado global, podemos afirmar que:

a) O autor do texto e o funcionário público que se inscreve no texto são a mesma pessoa;
b) Através desse texto, o enunciador projeta-se no texto sob a figura de um funcionário público para ridicularizá-lo.
c)  O texto revela que o autor se disfarça sob a forma de um funcionário público para não se comprometer com o fisco.
d) No texto toda a argumentação é conduzida contra a incompetência do governo.
e) Segundo o texto, não há nepotismo na administração pública brasileira.

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